segunda-feira, 19 de julho de 2021

Homenagem a António Ramos Rosa

geração do poema


o poema está aí onde tu o inventas

e a tua mão subverte esse tempo indefinível que lateja

na antecipação do prazer



está aí o poema, só teu, em nudez total

depois move-se, sempre inacabado, suplicando na dor do corpo

e rasga-te

no movimento

esse instante que ninguém viu, ou sentiu, ou respirou senão tu

profano aprendiz da agonia da palavra exacta

do rio profundo da matéria



está aí o poema, possuindo-te já e não possuído

tomando-te, o suor incendiado na vigília que entra pela manhã

calcinando-te no fogo interior da sua construção

está aí o poema

entre o sim e não, o amor e a morte, o anjo e a mutilação

o nada e a revelação

está aí, senhor e servo da tua criatura

em permanente mudança 

 

PEDRO SABORINO











quarta-feira, 26 de junho de 2013

ovo da serpente




no ornato no alpendre no beiral


estamos na casinha

na proporção

no silêncio

mas o rumor impera

o sangue cresce

a serpente nasce




Pedro Saborino

quarta-feira, 12 de junho de 2013

navegação do corpo


                                                            para a Graça Barroso



do rosto ao interior o músculo vibra tenso, contíguo


em viagem dolorosa da carne por diversas paisagens

por luzes que do nada se refazem e definem o flanco

o ventre reclinado

aberto



o corpo flui

de dentro

sobre um nada informe

da pele inexplicada brotam ramos

talvez gestos

o olhar abre-se à luz impiedosa do sol

e a palavra

finalmente

explode no silêncio



como o belo é assim o princípio do ser

a fonte o seu espaço, o fogo a sua voraz destruição



no imperfeito desvendamos por fim o sagrado



Pedro Saborino
in  Marginalia 2013

 

terça-feira, 28 de maio de 2013

Esboço de poema


                            Homenagem a Herberto Hélder, no dia da publicação de Servidões



aí estás, despojado de ti


e sobra-te a dor

o teu exílio

sobra-te a luz que estremece nos teus olhos antecedendo o fim

vejo-te

e despeço-me do teu olhar, da tua respiração

os teus dedos agarram-se aos meus dedos

e o teu corpo é agora o meu corpo

neste sangue inútil



Pedro Saborino

sábado, 4 de maio de 2013

voo



voo

                                                           homenagem a Ramos Rosa




estou aqui, de pé sobre a rocha, muito perto das aves


do seu voo marítimo, no cabo ocidental onde o vento sibila sobre o tojo

e o falcão vigia a passagem dos grandes barcos migrantes



a minha viagem começa aqui, neste bordo suspenso da gávea

por onde rolam as brumas da primavera e os grandes silêncios do oceano se fazem gemido e carne salgada

aqui, onde eu não tenho corpo e estou assim suspenso no olhar

da morte

em declive sobre o nada



e voo, despeço-me de mim, alcanço a luz

toco-a, íntima e solene, queimando as mãos



Pedro Saborino



quarta-feira, 24 de abril de 2013

assim




 assim


                                                        homenagem a Murilo Mendes




assim vivemos, nas aparas da luz

enquanto as aves exterminam as crias

e as papoilas do campo se consomem em lírica combustão

assim estamos, nesta dor quieta

enquanto a lâmina nos passa de lado a lado, perfurando a fome

assim enterramos o domingo com a sineta fúnebre dos dias

enquanto a peste se insinua pelas portas da cidade

e os rios vão secando em limos vagarosos

prenunciando o fim da musa

assim viajamos nos barcos nocturnos do degredo, em ritos de passagem



Pedro Saborino

quinta-feira, 28 de março de 2013

Orestéia



O que depois aconteceu não pude ver
e mesmo que pudesse não diria.

Agamémnon (Trilogia Orestéia) Ésquilo





Orestéia


onde está a mão divina no reino do visível?

o sangue que a mancha é dos simples mortais

ou dos próprios deuses?



os sinais revelam-se aos sentidos

como o olhar define o escuro perante a luz

ou os dedos modelam a forma do vazio

mas só Cassandra desvenda a face da verdadeira morte

a sua visão terrível

das Fúrias vigilantes

da longínqua cidade onde ecoam os heróis perdidos



nos seus braços tomará

como os deuses, a própria servidão



Pedro Saborino



domingo, 17 de março de 2013

Gilgamesh






às portas do oeste chega o viajante


busca no interior da vulcânica mina o tambor mágico

mas nada o salva da morte

do seu poder profundo

Enkidu não voltará

e o rei está só



longe fica a floresta dos cedros

o mágico luar, o voo redondo da ave

o rei está só

peregrino solitário

no vale enfrenta o leão, carrega depois a sua pele vestida sobre o tronco

até ao limiar do oceano

onde está Dilmun,o paraíso por onde sussurra a brisa da eternidade

e dessa, a planta de espinhos alcançará por fim

em vã procura



dentro dos muros de Uruk

agora é chorado pelo povo



a morte não é trágica

só os deuses mortais são trágicos




Pedro Saborino


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Os meus poetas



Trabalho na água que a voz movimentou

Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu

Daniel Faria in Poesia, Assírio e Alvim 2012







divido-me entre o grito incompleto da matéria

e o murmúrio do corpo, agora extinto

estou entre o fogo inominável e o desejo,

estou entre a criação e o anjo vigilante

na ombreira da porta , no seu olhar definitivo de barqueiro

do vasto rio do esquecimento



poderia dizer estou aqui

toquem-me as mãos do real, prendam-me os dedos dos ramos que crescem das suas raízes por dentro de mim

poderia dizer vou desesperadamente

como o vento tardio ou a queda do animal ferido na sua viagem inútil

poderia inventar a luz do rosto perfeito

do seu compasso, do seu verso , da sua grandiosa madrugada,

do seu poder,

poderia clamar ressuscitei dos meus próprios mortos

poderia negar tudo , todas as minhas compaixões, todos os meus medos

poderia ser outro



mas a substância das coisas está em mim

tudo se consuma no meu sangue



Pedro Saborino



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

o que é um corpo ?

o que é um corpo ?






descreve-me a nudez da morte

o espaço entre o olhar e a memória impossível

a voz cativa dentro da dor



fala-me depois da entrada das aves

do seu rumor estrepitoso e da sua cor amarela

como os sinos matinais



fala-me da noite imóvel com as suas cruzes negras

fala-me do silêncio dos velhos

dos seus braços caídos

dos miúdos ranhosos junto ao rio de cinza

fala-me da sua revolta indizível



fala-me depois do sonho verdadeiro

do seu cristal

desvenda-me o interior do corpo

a sua luz

domingo, 18 de novembro de 2012

estrada



estrada



já não habito essas ruas com tílias e varandas


silêncios entre os pássaros da manhã

geometrias de calcário e estátuas a olhar o rio

já não abro as janelas de par em par nem delas respiro o vento inquieto



agora apenas me sento

na cidade

no seu recanto

onde o mistério é sombrio

e as perguntas não têm respostas

e as palavras se apagam por dentro

em gélidas revelações da memória




sento-me aí por fim

sobre as revoltas

e nada digo ou penso ou invento destes muros

desta ruína

deste silêncio da peste

deste cabelo frio do medo



há cadáveres de rosto incerto junto de mim

toco-lhes a pele ainda húmida como se lhes ficasse da noite o espanto a fome

invoco os deuses da abundância agora ausentes

e nada resta agora

senão os cavalos mortos na paisagem









sábado, 4 de agosto de 2012

Quinto império




quinto império




vem do tempo antigo a memória

pelo percurso do vento

luz e trevas juntam-se no punho da manhã



a sua voz reclama da bruma não já o desejado

mas o teu corpo abrupto

o rumor que flui do sangue vasto e urgente



a viagem no mar austral continua

na navegação destes rostos agora silenciosos

que olhamos


aqui está pois o povo infindo

na claridade do despertar



somos agora talvez mais do que o futuro



Pedro Saborino



sexta-feira, 13 de julho de 2012

O fio invisível

                                                                                                                            ao meu pai



O fio invisível entre os teus dedos rompe o espaço


que revela a manhã.

Os teus dedos fabricam o fato

tecem o velo da memória,

e a obra cresce do nada

como se fosse ela mesma e a vibração da sua imagem

o misterioso rio e a sua nascente,

o rosto indecifrável da vida e o olhar vigilante da morte.



Os teus dedos desvendam o interior do duro ofício,

gesto a gesto,

o alinhavo que antecede a forma,

o ombro altivo, a entretela , o botão, a gola, a dobra,

a costura minuciosa do silêncio.

E as tuas mãos desdobram-se na inquietação dos dedos,

como ramos celebrados das noites

em que dizias os versos todos

da tua vida

dos lugares ali presos nas palavras.

E as tuas mãos desfazem os gestos, rompem-nos por dentro tal como a raiz se insinua no cerne da rocha

e assim nos faz renascer do chão.







quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os meus poetas - Paul Celan




Vinhateiros escavam o relógio das horas sombrias



cada vez mais fundo,


tu lês,


o Invisível desafia o vento,


tu lês,


os Abertos trazem a pedra atrás do olho,


ela te reconhecerá,no dia do Sabbath.


Paul Celan






os vestígios da morte dissipam-se na neve

o derradeiro passo diz-me que já não há regresso

a noite é então intensa nos meus dedos gelados

ouvimos muito perto as canções que perfuram o silêncio

e a minha mãe vigia

as palavras são a minha liberdade

o silêncio a minha condenação

se me ouvires poderei resistir

não existo só por mim mas porque me ouves

estou aqui

nu

acorrentado

perplexo

na desordem das coisas divinas



Pedro Saborino

segunda-feira, 25 de junho de 2012

abissus abissum invocat


Com um primeiro ministro convalescente de uma delicada cirurgia de descolamento de retina e portanto inactivo , um ministro das finanças demissionário por cólicas abdominais, sem quaisquer interlocutores a nível comunitário, sem dinheiro nos cofres do Estado para pagar salários de Junho e outros compromissos imediatos - o abismo grego é inevitável.

E depois?

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Nostoi


                             Serra do Roboredo, Moncorvo - imagem de Farrapos de Memória


Nostoi




(…) e o fim de toda a nossa exploração
será chegar aonde partimos
e conhecer esse lugar pela primeira vez


T.S.Eliot, Quatro quartetos





assim, entre o nada e a destruição dos dias, ocupo-me por fim dos seus escombros

busco por galerias de antigas minas da memória

o interior do ser

antecipando a grandiosidade do fogo,

metalúrgico sinal da origem

estou preso nas entranhas do verbo

evoco os lugares que julguei serem meus,

entre mim e outro, indecifrável,

diria todos os outros nos quais já não consigo ver-me

mas que fui eu e eu conheci

e me descobriram nesses lugares

lugares talvez verdadeiros

talvez apenas lugares através dos meus sentidos

descrevo-me pois viajante de retorno à idade das vozes primitivas

ao refúgio no qual cresce a inquietação

e o olhar do próprio tempo




Pedro Saborino



terça-feira, 12 de junho de 2012

dies irae




dies irae





nesta cidade viverá o teu nome

ó deus da justiça, mais do que os anjos que velam o invisível

sobre nós baixarás a tua mão

brotará o sangue sobre a nossa cabeça

como a bênção da morte redentora

falarás depois do esquecimento e

tudo se fechará num silêncio absoluto

como a luz que provém da escuridão

um rio que vem do fundo do tempo

remoto tal a origem do corpo

o universo tremerá, no espaço negro da força incógnita

e então desvendarás o significado da sabedoria do anjo

e das formas

mostrarás o teu poder

sobre a quietude, o vazio,

desvendarás a dor que nos acorrenta

e nos mantém escravos

nesta cidade escutaremos finalmente a tua voz

- ó deus da justiça-

como o cântico da libertação




Pedro Saborino










quinta-feira, 7 de junho de 2012

Corpus Christi



(…) Sob a pressão de vozes vindas do exterior, eles passaram a métodos mais suaves e têm dado ordens no sentido de que não se toque em um cabelo sequer de judeu.


Este boicote – que nega às pessoas a possibilidade de desenvolver uma actividade económica, a dignidade de cidadão e a pátria – tem empurrado muita gente para o suicídio: cinco foram os casos trazidos ao meu conhecimento somente dentre os meus familiares.

Estou convencida de que se trata de um fenómeno geral que provocará muitas vítimas. Pode-se pensar que os infelizes não terão tido bastante força moral para suportar o seu destino. Mas se a responsabilidade cai em grande parte sobre aqueles que os empurraram a um tal gesto, ela recai também sobre aqueles que se calam.

Tudo isto que aconteceu e que acontece quotidianamente vem de um governo que se define como “cristão”. Não somente os judeus, mas também milhares de fiéis católicos da Alemanha – e, eu penso, do mundo inteiro – aguardem depois de semanas e esperam que a Igreja de Cristo faça ouvir a sua voz contra um tal abuso do nome de Cristo (…).



Edith Stein, 1891-1942 (Auschwitz), canonizada em 1998 por João Paulo II como Santa Teresa Benedita da Cruz

Carta ao Papa Pio XI , 12 de Abril de 1933

segunda-feira, 4 de junho de 2012

os dias impuros



os dias impuros




escrevo-lhe não para me confortar mas para lhe dizer que apesar de tudo as dores não me atormentam tanto agora com o novo tratamento embora o tumor do meu pescoço continue muito inchado e tenso, sinto uma pressão enorme que por vezes me impede de falar e de respirar fico mesmo no limite da asfixia, as sessões de quimioterapia e de radioterapia deixam-me muito debilitado mas acho que depois ficarei melhor, muitas vezes imagino mesmo que me vou curar, é uma forma de olhar o mundo, sabe que continuo a trabalhar vou ao escritório falo com os colegas abro uns processos discuto umas ideias escrevo umas minutas sinto-me útil compreende? de resto sei que não posso fazer muito mais, depois regresso a casa vou sempre a pé devagar vou sorvendo os ruídos do mundo as vozes o ladrar dos cães o barulho dos carros entro no café e bebo uma bica a olhar um ou dois velhotes mal barbeados que reviram o jornal quase esfarrapado com notícias que nada adiantam ao seu rosto embaciado e eu próprio me perco por vezes em tal divagação, mas depressa me liberto do limbo incerto e procuro os sinais de que estou vivo, sofro por vezes cruamente mas estou vivo digo porquê não sei mas estou vivo de resto o que é viver? a obra feita ? as mulheres que amei? o meu filho que entretanto deixou de existir? o que é que eu fiz afinal na vida? fui o falcão agrilhoado ou a garra da águia ? a torrente o rio incontido ou o charco a viela a esquina? não lhe sei dizer nem será importante dizer porque nada é mais importante agora do que desatar estas cordas que sinto em volta de mim como uma servidão, não que eu deseje sofrer ou que a dor me purifique ou me redima ou absolva mas tão só porque não quero caber dentro do meu corpo quero estar do lado de fora de mim e olhar-me apenas como o ser físico sofredor o outro frágil que a doença vai minando, estou pois aqui ao mesmo tempo espectador da minha condição e senhor de mim mesmo, tenho dado comigo a pensar como desta forma eu posso escolher entre a essência da minha liberdade e a existência da minha natureza humana que se enreda na trama de todas estas vicissitudes às quais não posso fugir
vou tal como sísifo carregar a pedra do vale ao cume, da humilhação até à face dos deuses,dia após dia, vou acorrentar a morte
abraço amigo F.





Imagem de bucaorg (CC-usage) Flickr



domingo, 27 de maio de 2012

Houla



aqui

desenhamos o círculo da infâmia

atam-nos os braços espíritos da fome



aqui cavalgamos a maldade infinita

por ressequidos desertos

sem amanhecer



dai-nos estes lábios roxos

e o furor do sangue

para que nada nos reste

além da verdadeira morte