sábado, 14 de novembro de 2009

Elegância, eficácia e cortes de açougueiro


Em miúdo ia muitas vezes com a empregada da casa à praça, o mercado 31 de Janeiro, ali para os lados do Saldanha. Dessas incursões guardo na memória, como uma experiência quase iniciática, a visita ao talho. O magarefe empunhava o facalhão, previamente afiado num cerimonial que ele próprio desfrutava pelo canto do olho zanaga, pegava no naco de lombo ou no costado do porco e com uma suavidade calculada separava bifes e costeletas, que ia juntando ao lado com delicadeza .
Nada daquilo me parecia cruel ou grosseiro. Muito pelo contrário, eu via nesses gestos delicados, naquelas mãos sapudas, um requinte de perícia que eu admirava de olhos arregalados.
Mais tarde, já durante a minha formação hospitalar como cirurgião, recordei muitas vezes esses mesmos gestos. Vi e trabalhei com muitos cirurgiões. Alguns limpavam as mãos à bata, como se estivessem em campanha. Outros hesitavam na abordagem das estruturas, sem convicção. Outros ainda tremulavam perante qualquer emergência como principiantes. Outros ainda tratavam os órgãos com displicência ou com agressividade.
Mas também vi alguns, muito mais raros, que repetiam a suavidade do gesto do açougueiro. Que acariciavam os tecidos como panos de seda . Que dissecavam a canivete . Que moviam os dedos entre as pinças e compressas como uma dança magistral.
Estes ensinaram-me a paixão da cirurgia. O desafio da vida e a intimidade da arte.

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