quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ariel

Sylvia Plath (1932-1963)

Leoa do Senhor como nos unimos
Num eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco
Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro voo
Arrasta-me pelo ar...
Coxas, cabelos,
Escamas dos meus calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas(...)


Ariel

desta cidade viverá o teu nome, renascerá o teu rosto
oh deus da justiça, mais do que os anjos que velam o invisível
sobre nós baixarás a tua mão
brotará o sangue sobre a nossa fronte
como a bênção da morte redentora
falarás depois do esquecimento e
tudo se fechará num silêncio absoluto
como a luz que provém da escuridão
num rio que vem do fundo do tempo
remoto tal a origem do corpo


o universo tremerá , o negro espaço da força incógnita
definirá as tuas palavras e então
oh deus da justiça, desvendarás o significado da sabedoria do anjo
e das formas
mostrarás o teu poder
sobre a quietude, o vazio, desvendarás a dor
que nos prende
e nos mantém escravos


desta cidade te escutaremos a voz , te tocaremos a ponta dos dedos
oh deus da justiça
como o cântico da libertação

Pedro Saborino

29 de Setembro de 2009






domingo, 25 de outubro de 2009

Um corpo na duna


Foi encontrado de borco sobre a areia, de camisa aberta no peito, os dedos enclavinhados numa arma.
Na estrada , em cima, o carro tinha a porta do condutor aberta. Sobre o banco da frente o casaco, várias chaves espalhadas, um papel escrito com três ou quatro linhas. Escorria-lhe da cabeça um fio grosso de sangue. Ao lado alguns cigarros meio fumados. Caía uma chuva fina, insistente. O mar ressoava ao longe por sobre os pios das gaivotas.
Ali estava, como um tronco caído, sem raízes.
Um estilhaço.
Um barco naufragado.
Podia quase ouvir-se ainda o estampido ecoando na praia.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A tragédia da senectude


Nunca saí a correr de casa para comprar um livro de Saramago. A minha aproximação foi lenta, construída, elaborada. Fascinava-me o percurso de um mecânico de oficina que, desempregado, começou a escrever e de ignoto escriba, construindo um mundo mágico de personagens, chegou aos cumes do mais pungente humanismo. O Nobel não me impressionou nada. Havia muitos que o merecessem, tanto ou mais do que ele. Comovia-me sim a sofrida austeridade de Levantado do chão, o filigrana do Memorial ou a reinvenção de Cristo do Evangelho segundo Jesus Cristo . Depois, aos poucos, o desapontamento. A decrepitude. O esforço notório. O declive criativo. O azedume. E com a velhice irrevogável, a arrogância e o desconcerto.
Agora Saramago, que certamente nunca leu rigorosamente nada dos sessenta e tal livros que perfazem a Bíblia, expende preconceituosamente alguns dislates sobre a sua pretensa natureza de malevolência. Aceito o seu ateísmo. Mas isso nada tem a ver com o respeito pela natureza dos livros que a constituem, o seu significado cultural, o seu simbolismo intrínseco, o seu roteiro de leitura, a sua referência de civilização.
Saramago, ignorantemente, levianamente, estupidamente, tenta passar por cima de milénios , esquecendo que muito depois de os seus livros e as suas ideias serem apenas pó, se continuará a ler, a citar, a comentar, a reflectir sobre a Bíblia.
Pela razão simples de que a Bíblia é o espelho perene da própria natureza humana.

sábado, 17 de outubro de 2009

Out


As vozes tornam-se de súbito mais contidas, sussurros, olhares. O estridor do doente sobrepõe-se, num fundo permanente. O monitor apita. Tudo se dilui, como se as dimensões físicas do quarto se alterassem. Pequenas coisas assumem agora um significado diferente: o pequeno rádio portátil, as chinelas, o relógio de pulso, a fotografia sobre a mesa de cabeceira. As enfermeiras movem-se silenciosamente. Alguém folheia o processo clínico com murmúrios indefiníveis. Ao longe ouve-se a televisão, o desafio de futebol. O doente procura uma posição talvez mais confortável. Olhos cerrados. O corpo abandonado, roxo, exausto. As unhas dos pés compridas. Os movimentos respiratórios abrandam, num esforço irremediável. Um longo suspiro, sob a máscara de oxigénio. O silêncio depois. As pequenas coisas em cima da mesa. Esquecidas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Um rosto de lado


A visita médica, rápida, passou por ele na recuperação. Olhar inquisitivo, pensos um pouco repassados, drenos, uma traqueotomia. A rotina. Quarenta e poucos anos de idade. O cabelo precocemente acinzentado destacando-se na almofada. As mãos estendidas ao lado do corpo. Esboçou um sorriso. Eu tinha-o visto na consulta, com a mulher. Explicara-lhe a extensão da cirurgia, a gravidade, a mutilação. A dificuldade em comunicar. O prognóstico. Aceita ser operado? Dr. claro que aceito. Eu tenho dois filhos.

Depois, na enfermaria, o lugar da cama vazio. Como um alvéolo de solidão.Um devir. Sobre a mesa de cabeceira, dois retratos. Um de quatro cabeças juntas num momento de alegria, todos abraçados. Talvez uma festa das férias passadas. Outro com o braço sobre os ombros do miúdo,decerto o filho, ao entardecer, sentados na areia da praia. Uma praia deserta. Um olhar que se alonga sobre um previsível mar ali à sua frente. Como uma grande interrogação. Talvez um sonho interrompido.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Vou

A VIAGEM - Gil Teixeira Lopes, óleo sobre tela

vou até aonde as palavras me levam vou definitivamente pelas palavras fora experimento tudo o que me dão nesse caminho com avidez e por vezes com fúria não olho para nenhum lado não imagino nada tudo é directo imanente cru bruto como o sexo ou a morte não me detenho em nada que não seja o gozo a liberdade e a revolta nenhuma forma me contém nenhuma força é maior que essa seja vulcão torrente ou vaga nenhum deus me comove ou me cega nada é maior do que as palavras que me levam e sobre as quais me sento como num cavalo alado ou num touro que experimenta a minha força vou até onde as palavras me consomem me devoram num derradeiro banquete de sangue vou até ao mistério final das palavras

Outubro de 2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Salmo

A FUGA
Mário Eloy (1938-39) - óleo sobre tela 100x80 cm
Centro de Arte Moderna Dr. J. Azeredo Perdigão - Fundação Calouste Gulbenkian



Salmos 139:16
Os teus olhos viram a minha substância ainda informe e no teu livro foram escritos todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles.


não estou bem certo (passado tanto tempo) se me recordo
da tua voz, por vezes parece-me ecoar como um lamento
outras como um afago talvez mesmo uma dolorosa evocação
houve dias em que nem podia escrever
o mundo debruçava-se sobre o meu ser
ou talvez fosse o meu corpo entorpecido
que lentamente se descarnava
num ritual
tocavam-me, eu sabia que me haviam exposto as entranhas
depois puxavam-me para uma luz informe
num gelado silêncio
cuja memória me emudece
era um corpo só e desventrado
e a tua voz ecoava sobre ele
entrava nele , numa temível posse

Pedro Saborino

Setembro de 2009