sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sophia revisitada em Cacela

para Ibn Darraj al-Qastalli, poeta do al Andaluz





para Cacela Velha





e para Sophia de Mello Breyner








Poema azul


do mar azul dizia
e subitamente sobre o manto
da manhã mais não via do que o sereno azul
da flor e dos teus olhos
amada e flor azul como tu eras

do mar ainda a luz da madrugada
o gosto salgado e o profundo olhar
mais não sabia que muitos mares azuis
e azuis campos de flores
eram como do teu rosto a flor

e flor diria o teu corpo
tudo enfim te tocaria









Pedro Saborino


(Foto, aliás belíssima , de Elsa Estrela)

Revelação

Foto de Carlos Muralhas



Revelação


os objectos declinam a luz
em iluminuras suspensas ao final do dia
quando a cidade se adensa por entre códices e rumores
fervilham sons nos recantos
e aves cruzam o espaço dos jardins agora prisioneiros das estátuas
há gente apressada pelas ruas
olhares, silêncios, palavras gretadas, gestos esquivos nos autocarros suburbanos
que fedem um suor magoado, espesso

o rio é agora só uma esquina
um passo
um eco que a noite inventa em naves ocultas
do passado
nas vielas onde ascendem cheiros do perdido império
jasmim, incenso, canela


por fim tudo ali se mostra
aos olhos cegos
numa beleza táctil que nem a morte sujeita, grandiosamente
à destruição do corpo e à temível presença dos anjos
incompletos


Pedro Saborino

domingo, 24 de julho de 2011

obituário

para Maria Lucia Lepecki


obituário


agora já não descrevemos em conjunto a migração das aves
tocamos apenas um corpo gélido
que flutua sobre a linha
das interrogações
o rosto emerge concrescente e, como um ocaso, divagamos em socalcos
de memórias
numa penumbra inquieta
como se tudo fosse tão só o cenário
das coisas reais

destas já não negamos o interior
apenas lhes interrogamos os recantos
que a luz não define
e onde os espaços do silêncio são maiores

por vezes tão vastos que
se iniciam no seu fim



Pedro Saborino

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Esteiros









Esteiros


do esquivo vento outonal
te passará depois o inverno e daí arrancarás as flores
que a terra húmida e premente
te abrirá nas mãos
gretadas de unhas negras e inquieta revolta
virá o sol mais tarde pela manhã
talvez pela tarde quando os teus pés se perderem em ruas de cinza
e uma luz coada breve te afagar a cara
naquele recanto onde costumas estar sempre
a olhar o rio





Pedro Saborino

Ay Carmela

Homenagem a Mainstreet



Ay Carmela



não passarão sobre o teu corpo
não desenharão o rio do silêncio sobre ti
o tempo não ocultará o teu rosto
ou as tuas mãos
ou o teu sangue
ou o teu filho
ou a tua morte

não será medo ou fome ou dor o teu grito
mas o vento que dissipa a névoa

o mar que invade o sonho


estaremos aí
nesse chão