Ao fim da tarde, com Bernardo Soares (II)
Notei-lhe um fino tremor das mãos enquanto acariciava os bordos da pasta. “Mas antes deixe que lhe fale um pouco de mim. Não tenho propriamente uma história de vida para lhe contar. Também não sei se isso será importante. A minha mãe morreu quando eu tinha um ano e claro que não me lembro dela. O meu pai sei que se matou quando eu tinha três anos, mas na realidade nunca o conheci. Fui criado em Lisboa por uma tia materna. Uma tia austera. Tinha entretanto enviuvado e vivia de uma pensão do marido, que fora militar, e de trabalhos de costura que fazia para fora. O meu tio coxeava da perna esquerda devido a um ferimento antigo. Morreu cedo, com uma apoplexia. Lembro-me dele nessa tarde de cara roxa e inchada, agarrado à garganta, num estertor a que assisti aterrorizado sozinho com ele em casa. Aprendi muito cedo e rápido a ser severo, conciso e reservado. Não falava com vizinhos e tudo se passava num tom baixo de voz. As refeições eram a horas rigorosamente certas e nunca falávamos. As luzes eram apagadas às dez da noite. Acordava-se às seis e meia da manhã. Lembro-me do relógio de parede e das suas badaladas nervosas, de timbre metálico. Com elas acordava e me deitava”. Por instantes desviou o olhar e pousou a pasta preta sobre a mesa. Procurou no bolso do casaco o pacotinho de tabaco e com vagar foi enrolando um cigarro que depois acendeu, deitando entre os lábios uma baforada de fumo denso e acre. “Como vê não tenho uma história muito interessante para lhe contar. Vivi com a minha tia Lucília no 3º andar de um prédio da rua da Madalena. Era uma casa grande com cinco divisões,um longo corredor, uma cozinha com bancadas de pedra e uma despensa na qual me costumava fechar por vezes para me esconder. Na traseira tinha uma varanda que dava para as varandas de outros prédios e onde via os estendais de roupa o que por vezes era a minha única distracção. A única talvez não porque muitas vezes ali me sentava a ler, sobretudo Cesário. Como sabe a rua da Madalena é bastante tranquila e eu gostava, como ainda hoje gosto, de sair e descer até à rua da Alfândega e à rua do Arsenal para olhar as pessoas, os carros, o movimento. A minha tia morreu há seis anos. Passava longas horas a fazer paciências e por fim tinha muita dificuldade em andar, pelo que já não saía. Tinha algumas visitas de vizinhas que depois foram espaçando e eu próprio que já andava na Escola Comercial não podia estar muito tempo junto dela. Morreu sentada na sua cadeira da sala, sem qualquer agonia, indiferente e plácida”.
Notei-lhe um fino tremor das mãos enquanto acariciava os bordos da pasta. “Mas antes deixe que lhe fale um pouco de mim. Não tenho propriamente uma história de vida para lhe contar. Também não sei se isso será importante. A minha mãe morreu quando eu tinha um ano e claro que não me lembro dela. O meu pai sei que se matou quando eu tinha três anos, mas na realidade nunca o conheci. Fui criado em Lisboa por uma tia materna. Uma tia austera. Tinha entretanto enviuvado e vivia de uma pensão do marido, que fora militar, e de trabalhos de costura que fazia para fora. O meu tio coxeava da perna esquerda devido a um ferimento antigo. Morreu cedo, com uma apoplexia. Lembro-me dele nessa tarde de cara roxa e inchada, agarrado à garganta, num estertor a que assisti aterrorizado sozinho com ele em casa. Aprendi muito cedo e rápido a ser severo, conciso e reservado. Não falava com vizinhos e tudo se passava num tom baixo de voz. As refeições eram a horas rigorosamente certas e nunca falávamos. As luzes eram apagadas às dez da noite. Acordava-se às seis e meia da manhã. Lembro-me do relógio de parede e das suas badaladas nervosas, de timbre metálico. Com elas acordava e me deitava”. Por instantes desviou o olhar e pousou a pasta preta sobre a mesa. Procurou no bolso do casaco o pacotinho de tabaco e com vagar foi enrolando um cigarro que depois acendeu, deitando entre os lábios uma baforada de fumo denso e acre. “Como vê não tenho uma história muito interessante para lhe contar. Vivi com a minha tia Lucília no 3º andar de um prédio da rua da Madalena. Era uma casa grande com cinco divisões,um longo corredor, uma cozinha com bancadas de pedra e uma despensa na qual me costumava fechar por vezes para me esconder. Na traseira tinha uma varanda que dava para as varandas de outros prédios e onde via os estendais de roupa o que por vezes era a minha única distracção. A única talvez não porque muitas vezes ali me sentava a ler, sobretudo Cesário. Como sabe a rua da Madalena é bastante tranquila e eu gostava, como ainda hoje gosto, de sair e descer até à rua da Alfândega e à rua do Arsenal para olhar as pessoas, os carros, o movimento. A minha tia morreu há seis anos. Passava longas horas a fazer paciências e por fim tinha muita dificuldade em andar, pelo que já não saía. Tinha algumas visitas de vizinhas que depois foram espaçando e eu próprio que já andava na Escola Comercial não podia estar muito tempo junto dela. Morreu sentada na sua cadeira da sala, sem qualquer agonia, indiferente e plácida”.
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