C. entra devagar pela porta entreaberta, pequenos passos, cabeça curvada. Um rosto anónimo. 87 anos ? Talvez , talvez. O nariz destaca-se no rosto, firme, recto. O olhar esquivo. Ou vazio? Atrás uma acompanhante do lar com um pequeno dossier de capa verde na mão. Dona C, então diga-me o que se passa. Um silêncio que me leva a dirigir os olhos para a acompanhante. Nada de exames? Quem a manda cá? Alguma carta? A senhora foi fazer uma TAC ao hospital de Santarém,mas não trazemos nada. Só este papel. Sente-se ali dona C. Um tumor pétreo do pescoço. A cabeça sempre pendente, olhos no chão. Mas não tem nada aí ? Nem um papel? Nada doutor. A mão palpa. Que mais virá hoje? Não vou poder fazer nada. Uma pedra . Um imenso nada. Tem dores dona C.? Não, não tenho . É impossível. Um tumor destes não pode deixar de dar dores. Dores terríveis. Dores excruciantes . Não, não tenho. Há quanto tempo tem isto aqui? Levanta a cabeça e finalmente cruzo-me com o seu olhar. Onde não encontro nada senão o vazio.
O vazio da dor que já não se sente. Da vida que é já só um esperar. Do abandono. Sem revolta. Mas com muitas perguntas.
Senhor, já que a dor é nossa
ResponderExcluirE a fraqueza que ela tem
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém"
Desculpe não ser original, mas não encontrei palavras que exprimissem, na perfeição, aquilo que senti ao ler este seu belo texto.
Abraço!
Olá, Daniel:
ResponderExcluirVenho visitá-lo quase todos os dias. Gosto imenso não só do que escreve, mas também do modo como escreve.
Muitas vezes estou quase a comentar, mas acho que qualquer comentário só iria estragar o que o meu Amigo escreveu.
Releio os seus textos , penso no seu trabalho , tão difícil, o peso das decisões que tem de tomar, o lado humano a enfrentar: a dor, o olhar, a morte . É preciso grande força interior e grande humanidade para fazer o que faz.
Um abraço imenso
Júlia
Agradeço ao Sá Gué e à Júlia os comentários. Aqui a porta é franca e a entrada dos Amigos é bemvinda.
ResponderExcluirQue posso dizer? Escrever é uma pulsão irreprimível. Não sou de escrever em caderninhos- escrevo na mente e, claro, muito se perde. Mas para mim isto é olhar o mundo -com as suas imperfeições, a sua quase crueldade - no qual a redenção existe, é possível e está à nossa frente. Uma visão talvez um pouco dostoievskiana do real. Como quiserem.
Abraços do
Daniel