sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ao fim da tarde, com Bernardo Soares (II)


Ao fim da tarde, com Bernardo Soares (II)

Notei-lhe um fino tremor das mãos enquanto acariciava os bordos da pasta. “Mas antes deixe que lhe fale um pouco de mim. Não tenho propriamente uma história de vida para lhe contar. Também não sei se isso será importante. A minha mãe morreu quando eu tinha um ano e claro que não me lembro dela. O meu pai sei que se matou quando eu tinha três anos, mas na realidade nunca o conheci. Fui criado em Lisboa por uma tia materna. Uma tia austera. Tinha entretanto enviuvado e vivia de uma pensão do marido, que fora militar, e de trabalhos de costura que fazia para fora. O meu tio coxeava da perna esquerda devido a um ferimento antigo. Morreu cedo, com uma apoplexia. Lembro-me dele nessa tarde de cara roxa e inchada, agarrado à garganta, num estertor a que assisti aterrorizado sozinho com ele em casa. Aprendi muito cedo e rápido a ser severo, conciso e reservado. Não falava com vizinhos e tudo se passava num tom baixo de voz. As refeições eram a horas rigorosamente certas e nunca falávamos. As luzes eram apagadas às dez da noite. Acordava-se às seis e meia da manhã. Lembro-me do relógio de parede e das suas badaladas nervosas, de timbre metálico. Com elas acordava e me deitava”. Por instantes desviou o olhar e pousou a pasta preta sobre a mesa. Procurou no bolso do casaco o pacotinho de tabaco e com vagar foi enrolando um cigarro que depois acendeu, deitando entre os lábios uma baforada de fumo denso e acre. “Como vê não tenho uma história muito interessante para lhe contar. Vivi com a minha tia Lucília no 3º andar de um prédio da rua da Madalena. Era uma casa grande com cinco divisões,um longo corredor, uma cozinha com bancadas de pedra e uma despensa na qual me costumava fechar por vezes para me esconder. Na traseira tinha uma varanda que dava para as varandas de outros prédios e onde via os estendais de roupa o que por vezes era a minha única distracção. A única talvez não porque muitas vezes ali me sentava a ler, sobretudo Cesário. Como sabe a rua da Madalena é bastante tranquila e eu gostava, como ainda hoje gosto, de sair e descer até à rua da Alfândega e à rua do Arsenal para olhar as pessoas, os carros, o movimento. A minha tia morreu há seis anos. Passava longas horas a fazer paciências e por fim tinha muita dificuldade em andar, pelo que já não saía. Tinha algumas visitas de vizinhas que depois foram espaçando e eu próprio que já andava na Escola Comercial não podia estar muito tempo junto dela. Morreu sentada na sua cadeira da sala, sem qualquer agonia, indiferente e plácida”.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ao fim da tarde, com Bernardo Soares


Naquele dia chuvoso de Setembro, que prenunciava um Outono sombrio, descia a Rua Nova do Almada a pensar no bilhete que me tinham deixado na porteira. Queria falar comigo e mostrar-me uns escritos. Uma letra minuciosa, caligráfica, alongada. Alguém lhe dera o meu endereço certamente nalguma tertúlia.
Depressa alcancei o largo de Santos e daí, estugando o passo, a rua de S. Paulo, já sob uma bátega violenta. Quando deparei com o número escrito no bilhete encontro uma porta esconsa de pensão, que nada faria adivinhar não fosse a tabuleta “Pensão Ideal- Almoços e Jantares”. Ainda de rosto molhado entrei no vestíbulo, com um chão de pedra e quase sem luz, e rapidamente subi ao primeiro andar. Uma porta pesada, de um verde já pintado há muitos anos. Dentro ouviam-se algumas vozes, quase em sussurro. O botão da campainha não funcionava, pelo que decidi bater.
O ralo da porta abriu-se e percebi um brilho de óculos que depressa se transformou num “Quem é?” enrouquecido. “O sr. Bernardo Soares está?”. “Está sim. Eu vou abrir”.
Após o ruído do trinco, a porta abre-se para uma saleta de paredes pintadas de azul desbotado e um corredor longo com vários quadros antigos pendurados na parede, ao fundo do qual, à direita se percebia existir uma sala de onde provinham as vozes.
“O sr. Soares está na sala ao fundo”. Ao meu encontro vem um homem magro, vestido com um fato cinzento escuro, gravata azul de nó fino, rosto anguloso no qual se destacava um olhar inquiridor, talvez inseguro, mas persistente. “Sr. S. quero agradecer-lhe o incómodo de ter vindo. Muito desejava a sua vinda. Queira fazer o favor de entrar”.
Conduz-me em passo apressado para um cadeirão da sala, sob um candeeiro que naquele fim de tarde outonal espalhava uma luz cérea. Em redor uma mesa baixa coberta com um naperon de renda. Ao canto um tripé alto suportava uma vaso com gladíolos amarelecidos. Sobre uma das paredes uma velha pintura campestre com um moinho. Do lado oposto uma fotografia de um militar com bigodes retorcidos e a mão direita apoiada no punho do sabre.
Bernardo Soares apagou no cinzeiro um cigarro de tabaco de onça e, sentando-se na cadeira à minha frente, começou por dizer que, sendo ajudante de guarda-livros num armazém de mercearias da rua de S. Julião, tinha ouvido falar de mim numa conversa de café, mais exactamente no Martinho. Que apreciava muito os escritores do Orpheu e que ele próprio também escrevia. Retorqui-lhe que os escritos do Orpheu não eram senão para alguns e, com espanto meu, disse-me que ele era um desses alguns.
Nesse instante fixei melhor o seu olhar e descobri-lhe uma profunda inquietação, uma terrível mistura de perguntas sem resposta, de contradições e de vazios. A chuva batia fortemente na janela da sala e ouviam-se vagamente alguns carros na rua. “Sr. S. eu tenho aqui alguns cadernos de escritos meus que gostava de lhe mostrar”. Abriu uma gaveta no móvel ao seu lado e retirou uma pasta de cartão preto com elásticos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Duende


Nestas noites quentes de Verão, que apetece gozar até ao alvor da manhã, saio muitas vezes até Sevilha, deixando para trás um Algarve massificado onde muitos portugueses fingem que se divertem espojando-se na praia à torreira do sol entre um almoço de sardinha assada e um jantar de febras e vinho rasca.
A noite sevilhana tem, no Verão, um misterioso perfume de laranjeiras que suaviza o bafo mediterrânico do levante. De repente as luzes tornam-se amareladas, os jardins povoam-se de misteriosos recantos com secretos rumores, as vielas do bairro judeu enchem-se de uma multidão que transborda dos bares num vozear interminável , os pátios fecham-se em mistérios de antigas lendas mouriscas, evola-se o canto de lamentos que se perdem na memória do tempo entre batidas de palmas.
Canto que se prolonga depois pela noite em vários tablaos , alguns para turistas, mas um ou outro com programa mais profundo. Entrego-me fascinado a esta viagem que nos leva perto de alguns segredos indecifráveis. Desenham-se figuras, reinventam-se ritmos, forjam-se emoções, num inexplicável tempo que as escalas sincopadas das guitarras, as palmas, o sapateado, tornam numa vertigem . Os dançadores têm uma pose demiúrgica que recria o eterno mito da paixão mortal, um sentimento trágico da vida, eros e tanatos.
Impossível não lembrar Lorca. E esse indefinível duende.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dos cinco sentidos


Dos cinco sentidos:
Perguntar se vio, ou ouvio, ou cheyrou, ou palpou, ou gostou algua cousa defendida sopena de peccado mortal : ou porisso peccar mortalmente, ou le pos a sy, ou a outro em algu perigo probavel de peccar mortalmente , ou deixou de comprir algua ley que obrigau a mortal, Ou fez notavel damno da alma, saude, honra, ou fazéla da do proximo, ou da alma, ou saude de si mesmo.
in Manuall de Confessores & penitentes, p. 498, MDLX.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A mão da gruta de Chauvet


As fascinantes pinturas rupestres da gruta de Pont d'Arc, no Sul de França, a maior parte das quais com cerca de 30 a 32 000 anos ( mais antigas portanto que as da gruta de Lascaux), incluem para além de um grande número de figuras animais de comovente realismo, a imagem em negativo de uma mão direita. A mão do artista, se entendermos por artista o criador da imagem e, ao mesmo tempo, o indutor do seu significado.
Porquê a mão? Porquê esta linguagem nova? Esta incursão no terreno do sagrado, no recinto ritualizador da hierofania?
A gruta, povoada de representações animais que o quotidiano apresentava ao caçador, fonte da vida e da sobrevivência, era decerto a imagem do seu microcosmo, fora do qual nada mais existiria que a competição selvagem e porventura o caos.
Podemos imaginar um sentido mágico nesta mão - o ponto de encontro do concreto com a estrutura organizadora do pensamento humano, como referia Lévi Strauss. A observação meticulosa da realidade incluia em si mesma o seu princípio e a sua interpretação. A sua significação seria a forma de intervir no real. A mão o seu agente.
A mão que caça, que come, que faz, que mata, que ritualiza enfim - a mão que transcende a função para se tornar no instrumento da divindade. A mão criadora. Que pinta, que inventa, que acaricia, que escreve.
A mão que cura.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A blogosfera




A blogosfera é o reino do efémero. E também o da imaterialidade. E também o da abrangência.E também o da ilusão.

Nela cabem a discussão sobre o repolho do quintal e o grande arroto metafísico do filósofo em fim de carreira. A erotogénese das mamas da vizinha e o lúbrico mundo do geronte voyeur. A introspecção da matrona reformada que tecla o sexo nas tardes mornas e o cavalo voador da mais desconformada paixão. Cabem o político do discurso e o discurso sem política, o tom bom e o bom tom, o mau hálito da velha (política) consumida escatologicamente, massificadamente, redundantemente, prostituidamente.

Cabem o texto e o contexto, a canção e a cantada, o toque e o apalpão, o botox marado e o nariz refinado, a dama e a madama, a coxa e a pernama.

Cabem o sacrílego, o sarcástico, o satânico, o salamizador, o exterminador, o purificador. O eterno e o finito. O divino e o profano. A verdade e o cenário. O sim e o não. O pois sim.

Vale tudo na blogosfera. Se está vivo, faça-se morto. Se morreu , revivifique-se. Desanque-se, desmonte-se , componha-se, cuspa-se, dispa-se, desfaça-se, invente-se. Se. Se puder, poste-se. Na posta. No posto. Composto. Recomposto. Descomposto. Indisposto. Satisposto.
Génios e imbecis. Sensatos e insanos. Mais imbecis que génios, obviamente.


Morra a blogosfera! Morra ! Pum!


Homenagem ao Carlos Mota de Oliveira, autor de LOGO, EM PORTO FORMOSO

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Bernardo Santareno (1920-1980)


Falar de Bernardo Santareno é falar daquele que poderá ser considerado o maior dramaturgo português da segunda metade do século XX.
Médico, licenciado pela Faculdade de Medicina de Coimbra em 1950, psiquiatra. Filho de um republicano convicto, que o resgatou ao seminário por " preferir vê-lo morto a ser padre". Entre 1957 e 1958 acompanhou como médico a frota bacalhoeira nas campanhas de pesca do bacalhau, experiência que lhe serviu de base para as peças "O lugre" e "A promessa".
Numa época em que o regime salazarista perseguia toda e qualquer voz discordante, Bernardo Santareno foi uma vítima da repressão e muitas vezes silenciado. A sua notável peça "A promessa" foi retirada de representação por influência do reaccionarismo eclesial de paróquia associado ao obscurantismo do regime.
A sua militância política passou pelo MDP/CDE e pelo Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais.
Se a sua matriz estética foi o neo-realismo, a sua genial criatividade evoluiu da afirmação de uma pujante linguagem poética quase naturalista para um registo épico, brechtiano, mas sempre de uma peculiar ênfase, que revive a tragédia grega nos seus momentos de maior universalidade.
De um primeiro ciclo em que se incluem "A promessa", "O bailarino", "A Excomungada","O Lugre" , "O Crime da Aldeia Velha","António Marinheiro", "Édipo de Alfama", "O Duelo", "O Pecado de João Agonia"e "Anunciação", Santareno passou a uma fase de um intervencionismo político em que se destacam "António José da Silva o Judeu", "O Inferno", "A Traição do Padre Martinho" e sobretudo " Português, Escritor, 45 anos de idade", esta já depois do 25 de Abril e que constituiu um marco na literatura dramática portuguesa dos últimos 50 anos.
Das sua últimas quatro peças publicadas em 1979 sob o título "Os Marginais e a Revolução" ressalta a problemática do preconceito face à liberdade de opção, a discriminação e a mentira social, numa perspectiva que desmascara a sociedade portuguesa no seu conservadorismo e na sua hipocrisia.
Muito além do seu tempo, muitas vezes atacado e outras tantas ignorado, Bernardo Santareno é uma figura gigante do panorama intelectual português que aqui evoco, com toda a justiça.