quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dignidade




Ela estava ali sentada à minha frente, as mãos de dedos finos e pálidos sobre o regaço, os olhos sem brilho. Fez-se um silêncio. Dois ou três longos minutos de interrogações. De súbito o meu olhar cruzou-se com o dela. Entendi-lhe a força da sua enorme fragilidade. Do seu pequeno corpo decrépito, minado pela doença terminal. Da solidão perante a doença inexorável. Do nada físico exposto ali, pungente, como se fosse a última das dádivas. Ao lado a empregada do lar de idosos em que vivia folheava um dossier de capa verde com meia dúzia de folhas. Notas clínicas sumárias. Monólogos de vazio quotidiano. Tudo se resumia àquele círculo da nossa presença. Que os seus olhos tornavam do tamanho do universo.
Fora, no pequeno televisor da sala de espera da consulta, passavam notícias da bolsa no noticiário das 13.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

canto do amanhecer

Ao Carlos Paredes




neste país que arrefece nos silêncios
das lutas mortas
naus submersas de viagens sem regresso
maio esquecido
nas searas de trigo imaginado
no teu peito inquieto eu procuro o teu rosto
ó voz antiga
ó rio infindável
da liberdade
já não te ouço
já não te espero no alvor da manhã
como dantes
onde o meu sangue te nomeava
os meus olhos já não te podem ver
como dantes
e o meu corpo vagueia
neste canto do amanhecer
sem alegria
sem nada

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

os olhos vazios dos deuses



Os homens da Europa, abandonados às sombras, desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Trocaram o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça quotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perderam a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam imortalidade a uma prodigiosa agonia colectiva. Já não acreditam naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o mistério da Europa é que ela já não ama a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo adiando-a para mais tarde.
A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem, levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumanidade. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles divinizaram-se e a sua desgraça começou: estes deuses têm os olhos vazios.

Albert Camus, O Homem Revoltado , 1951





Não queremos os deuses

da misericórdia

não tememos a dor

não tememos o medo

não queremos voltar a ser a imagem da inquietação.

Invocamos-te, divindade, para te dizer: não te queremos.


Já não somos escravos, libertámos a vontade

defrontámos o teu rosto para te mostrar os nossos olhos

a nossa boca que proclama liberdade

os nossos braços que derrubaram as grades

das tuas prisões.


Pode a tua voz rugir sobre nós, lançar o medo, o opaco

manto da negação


mas nada nos deterá.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

sôbolos rios que vão

ao rio Sabor, berço da minha memória

e a Camões, tão perto de nós


sôbolos rios que vão
na minha terra, crescem
as penas que em mim nascem
das memórias que ali estão
e por eles permanecem

como o verde curso agreste
levo a mágoa que se tem
por tudo o resto que vem
no tempo que a mim reste
do tempo que a vida tem

entre o meu corpo e os medos
contam-me sonhos do mar
belas coisas de encantar
desvendam-me os seus segredos
que o sonho não vai guardar

dos meus rios desta vida
não me digam donde vão
porque se alonga a partida
sôbolos rios que vão
em todos há despedida



Pedro Saborino

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

não quero ser uma paramécia



a paramécia é um ser unicelular não pensa não tem cérebro é um ser unicelular pois claro a minhoca tem 300 neurónios a mosca aí uns 60 000 mas sabem a paramécia reage foge esquiva-se e vive tem vida própria e a minhoca quando lhe falta a comida junta-se as outras minhocas a mosca descobre os aromas e até dizem que se embebeda mas não é só outros seres como os macacos os lobos os golfinhos reagem ao ambiente de forma inata pré-determinada imanente nem eles próprios sabem porque o fazem mas fazem e fazem-no para se defenderem ou para se alimentarem ou para se reproduzirem de acordo com o ambiente ou as suas necessidades só isso –
mas eu tu nós todos modulamos as nossas emoções escolhemos agimos construímos decidimos muito para além das emoções da tristeza da raiva do pânico do desejo sorrimos e rimos e choramos percebemos o nosso corpo para além dele próprio para além de mijar de fazer sexo temos a ideia de nós mesmos como seres absolutamente imperfeitos e vulneráveis compassivos e despóticos apaixonados e indiferentes corajosos e cobardes indecisos e determinados submissos e inconformados temos memória procuramos a justiça e o bem e a solidariedade e a verdade nos vales profundos do pensamento nesse limbo que separa a biologia da paramécia da natureza humana -
não sejamos paramécias não deixemos que façam de nós paramécias a nossa mente é a substância do nosso corpo

terça-feira, 6 de setembro de 2011

cosa mentale







cosa mentale


(…) ninguém sabe como e por que meios a mente move o corpo.
Espinosa, Ética

No início tinha apenas umas fulgurações, algo que não o incomodava muito. Como que uma pressão por detrás da órbita direita. Nada que o impedisse de escrever. Muito menos de pensar. As suas rotinas diárias fluíam invariáveis, as aulas, o novo romance que começara a rever, a crónica semanal que tinha de enviar para a redacção até quarta feira, a visita diária ao café, os seus papéis em que anotava ideias e comentários de leituras, por vezes fazia desenhos. Desde que se separara tinha mais tempo para tudo isso. O Brisk, o velho boxer, tinha morrido meses atrás. A casa tinha agora uma penumbra de fumo de cachimbo e fina poeira suspensa que os escassos raios de luz revelavam. Retirara todas as fotografias dos caixilhos que agora se dispersavam vazios pela casa como olhos cegos. Ficava por vezes, sentado na beira da secretária, a olhar esses caixilhos como se fossem quadros de memória silenciosa. Tinha um passado, claro, para lá dessa fronteira invisível. Toda a gente tem um passado. O corpo tem um passado físico inexorável. Mas olhar o tempo era diferente. Não porque as coisas tivessem mudado, mas porque se sentia diferente.
Começara entretanto com dores mais fortes. O olho direito começara a ficar mais saliente e a visão complicou-se. Agora via duas imagens.
Tudo se precipitou a partir daí. Os exames médicos mostraram um tumor dentro da órbita. No dia em que lhe deram a notícia foi para casa e sentou-se junto da janela da sala até anoitecer, com as mãos cruzadas sob o queixo, estático. Pela primeira vez pensou que podia morrer.
Morrer sozinho. Para si e dentro de si. Entre os livros e papéis espalhados. Como a chuva que caía lá fora era algo que podia apenas explicar, mas que não podia impedir. Tal como a divindade universal.
Podia então morrer indefinidamente e continuar . Porque morrer não era um bem, nem um mal. Apenas uma transição.