quinta-feira, 30 de julho de 2009

Um deus iníquo



A primeira vez que o vi pareceu-me um homem ainda mais pequeno do que na realidade era, de passos curtos, olhos mortiços, um abandono de quase indiferença. Vinha por um tumor no pescoço que havia algumas semanas o atormentava, duro, inflado, estranho. Trazia consigo a mulher, de falas vibrantes, aquele sotaque de fronteira meio espanholado. E uma história obscura. Uma manhã, por desvario, desfechara no crâneo um tiro . Um tiro de que guardava , perto do cerebelo, a irremovível marca. Um projéctil que a cirurgia não conseguira remover. Mas que não lhe roubara nem a vida, nem o tino. O que R. já aceitava como um sinal da providência. Uma benesse.
Operei-o. Durante um par de anos o tumor não deu sinais. Por vezes trazia-me umas chouriças de porco preto, como que de festejo. Depois , um dia, em surdina, começou a tolher-se-lhe a marcha. Os passos tornaram-se vacilantes, caía, tremulava. Pensou-se que fosse da bala. Não era. Era uma coisa neurológica, degenerativa. Irreversível.
De semana em semana R. piorava. Passou à cadeira de rodas. O rosto ensimesmado, a fala presa. De repente deixou de engolir. Nada lhe passava pela goela. Teve que ser intubado. As análises não estavam bem. A hematologia desencantou algo estranho. Um mieloma. Fez quimioterapia.
R. emagreceu ao limite. Ficou esquálido, inerte, de olhos vidrados. Um dia sangrou da boca, uma hemorragia estúpida. Abra lá a boca sr. R. Um tumor, um maléfico tumor da gengiva que o excruciava já de cheiro e dores. Foi de novo operado. Uma cirurgia miserável, mutilante, de incerto fim. Mais uma traqueotomia. Mais tubos. Mais angústias.
Mas R. conseguia por vezes sorrir. Os olhos, cada vez mais pequeninos, brilhavam no fundo de duas covas orbitárias. E levantava os polegares. Na sua cadeira de rodas.
A semana passada R. voltou. De língua inchada, disforme. Tinha uma recidiva. Inoperável.
Vou amanhã despedir-me dele. Vai para uma unidade de cuidados paliativos.
Com a bala dentro do crâneo.

Um comentário:

  1. Acredito na ciência,
    Aceito as dificuldades,
    Começo a acreditar no destino.
    Abraço.

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