quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ao fim da tarde, com Bernardo Soares


Naquele dia chuvoso de Setembro, que prenunciava um Outono sombrio, descia a Rua Nova do Almada a pensar no bilhete que me tinham deixado na porteira. Queria falar comigo e mostrar-me uns escritos. Uma letra minuciosa, caligráfica, alongada. Alguém lhe dera o meu endereço certamente nalguma tertúlia.
Depressa alcancei o largo de Santos e daí, estugando o passo, a rua de S. Paulo, já sob uma bátega violenta. Quando deparei com o número escrito no bilhete encontro uma porta esconsa de pensão, que nada faria adivinhar não fosse a tabuleta “Pensão Ideal- Almoços e Jantares”. Ainda de rosto molhado entrei no vestíbulo, com um chão de pedra e quase sem luz, e rapidamente subi ao primeiro andar. Uma porta pesada, de um verde já pintado há muitos anos. Dentro ouviam-se algumas vozes, quase em sussurro. O botão da campainha não funcionava, pelo que decidi bater.
O ralo da porta abriu-se e percebi um brilho de óculos que depressa se transformou num “Quem é?” enrouquecido. “O sr. Bernardo Soares está?”. “Está sim. Eu vou abrir”.
Após o ruído do trinco, a porta abre-se para uma saleta de paredes pintadas de azul desbotado e um corredor longo com vários quadros antigos pendurados na parede, ao fundo do qual, à direita se percebia existir uma sala de onde provinham as vozes.
“O sr. Soares está na sala ao fundo”. Ao meu encontro vem um homem magro, vestido com um fato cinzento escuro, gravata azul de nó fino, rosto anguloso no qual se destacava um olhar inquiridor, talvez inseguro, mas persistente. “Sr. S. quero agradecer-lhe o incómodo de ter vindo. Muito desejava a sua vinda. Queira fazer o favor de entrar”.
Conduz-me em passo apressado para um cadeirão da sala, sob um candeeiro que naquele fim de tarde outonal espalhava uma luz cérea. Em redor uma mesa baixa coberta com um naperon de renda. Ao canto um tripé alto suportava uma vaso com gladíolos amarelecidos. Sobre uma das paredes uma velha pintura campestre com um moinho. Do lado oposto uma fotografia de um militar com bigodes retorcidos e a mão direita apoiada no punho do sabre.
Bernardo Soares apagou no cinzeiro um cigarro de tabaco de onça e, sentando-se na cadeira à minha frente, começou por dizer que, sendo ajudante de guarda-livros num armazém de mercearias da rua de S. Julião, tinha ouvido falar de mim numa conversa de café, mais exactamente no Martinho. Que apreciava muito os escritores do Orpheu e que ele próprio também escrevia. Retorqui-lhe que os escritos do Orpheu não eram senão para alguns e, com espanto meu, disse-me que ele era um desses alguns.
Nesse instante fixei melhor o seu olhar e descobri-lhe uma profunda inquietação, uma terrível mistura de perguntas sem resposta, de contradições e de vazios. A chuva batia fortemente na janela da sala e ouviam-se vagamente alguns carros na rua. “Sr. S. eu tenho aqui alguns cadernos de escritos meus que gostava de lhe mostrar”. Abriu uma gaveta no móvel ao seu lado e retirou uma pasta de cartão preto com elásticos.

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