segunda-feira, 29 de junho de 2009

O direito ao rosto



Quando A. entrava na sala de espera da consulta as vozes baixavam de tom e havia sussurros.
A. tinha sido uma bela mulher. Um cancro da face, terebrante, insidioso, motivara já várias cirurgias . Cada uma mais mutilante do que a anterior. Até que, no limiar das drásticas decisões lhe fiz a "grande" cirurgia. A cirurgia transfiguradora . A da imagem nulificada, da proscrição, a sagrada ablação do mal, salvífica e necessária.
Mas, com a mão que desfere o golpe, lhe reconstruímos também o rosto. Um rosto então determinado pelos olhos vivos e inquiridores e pela boca, uma boca de lábio superior inerte. Entre eles um espaço, uma ideia de humano, uma forma a haver.
A. olhava todos de frente. Sem máscara alguma. Nunca. Os olhos brilhavam sobre a apreciação compungida dos outros. Uma sociedade selvática, crua de vazios e negações.
Foi entretanto ainda reoperada . Um sobressalto. Que mais fortaleceu a vontade de assumir um rosto. Não necessariamente o rosto original. Mas um rosto novo . Um novo nariz. Uma identidade física que nunca se negara no seu íntimo. Orgulhosamente .
Lenta e pacientemente começámos .
Desenhando um rosto.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Crónica da infância revisitada



Mão amiga ( que não quero revelar mas muito estimo) ofertou-me esta magnífica criação de Baptista-Bastos. Com um carinho que tudo diz da sua - ofertante- bondade e da sua perspicaz compreensão dos meus gostos.

Para além das suas estorinhas de compungente emoção.

Sucede que tenho por B.-B. um enorme afecto. Tão desinteressado quanto genuíno.

E, como ocorre quando o afecto é genuíno e desinteressado, a análise esmorece e o verbo flui , sem outro passo que o da generosidade.

Assim é com este conto, que porventura já não é conto, nem memória, nem verso, nem nada.

Apenas um traço, um rosto, ou muitos rostos e muitas vozes, uma aguarela como as que o pincel de Mónica Cid ali deixam , dentro dos nossos olhos.

Começa com um era uma vez de uma avó que nunca teve ocasião para se sentar e olhar o rio. Uma avó que o autor retrata de compleição baixa, rosto firme e vivência magoada e apreensiva.

Que interpelava o pai , beberrão, ossudo, bruto, mas de triste olhar, sobre o cuidar do filho. E de tudo sabia, num reportório de vivos e de mortos em que o bairro da Bica, onde habitavam, era cenário e foi memória de um mundo que B.-B. revive e refaz.

Um bairro de figuras reais, com um poeta de fechado rosto , esquivo, autor de letras para fado, e outras figuras, ciganos e surdos-mudos, boa gente que a avó lhe descobria para o mundo .

A avó da bolsa de quadrados de flanela de onde saiam umas moedas, um auxílio, um conforto, a bolsa mágica do afago."Tens sonhado um bocadinho por mim?" questionava a avó , que de livros pouco sabia, mas lia na natureza os sinais da eterna busca , como a maresia que do rio subia ás ruas . O rio , o rio eterno como o fluir universal das coisas. Como as putas verdadeiras e a descoberta do corpo, num sobressalto .
Uma avó sábia, pequena e sofredora, imensa e comovente no imaginário de B.-B. , que morreu num dia feriado, docemente, como um pássaro ferido, a olhar o neto.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Fracasso


É por demais óbvio que a campanha do Partido Socialista para as eleições do Parlamento Europeu foi, mais do que decepcionante, um fracasso total. Fracasso que nem a militância do PS conseguiu disfarçar. Vital Moreira, independentemente do seu valor intrínseco como cidadão e como intelectual, foi sem dúvida alguma uma péssima escolha. Uma escolha que compromete de alguma forma, pela pálida imagem pública, discurso cinzento e falta de convicção, a própria imagem do PS neste momento tão crucial na definição de uma estratégia eleitoral para as autárquicas e legislativas de 2009.


Maria de Lurdes Pintasilgo, João Cravinho, António Vitorino e Sousa Franco foram de longe candidatos cabeças de lista mais intervenientes e mais brilhantes do que demonstrou ser Vital Moreira.


Do Congresso de Espinho saiu uma dinâmica estruturante com vista ao combate às desigualdades, exclusão e discriminações, de maior justiça social que alguma vez a direita oportunista e a esquerda demagógica e radical poderiam seriamente propor , dinâmica que a campanha socialista das europeias apenas palidamente reflectiu, se é que essa mensagem alguma vez atingiu o eleitorado.


Mais do que nunca os próximos e decisivos embates eleitorais farão prova da força e vitalidade da esquerda democrática e dos seus valores , face ao sinuoso discurso revivalista de uma oposição que se divide entre o magistério compungido da direita e a utopia gasta de uma esquerda que caça votos no descontentamento do eleitor, dando numa mão um nada e na outra uma ramo de coisa nenhuma.
Mais do que nunca há que dizer a verdade aos portugueses, fechar o balanço da hipocrisia e da ambiguidade, enfrentar o descontentamento e a desilusão, construir esperanças e horizontes - sem o que o sufrágio pode revelar-se calamitoso. Para nós e para as próximas gerações.
O abismo chama o abismo.