quinta-feira, 29 de março de 2012

Para Rafael Albertí

Não é mais fundo o poeta no seu subsolo escuro



encerrado. O seu canto sobe mais profundo



quando, aberto no ar, é de todos os homens.






in Balada para os poetas andaluzes de hoje







de que se fazem o canto e as duras formas dos picos submersos na angústia do anoitecer de que se faz o rosto acerado
aquelas mãos retorcidas que cortam o vento
de que se fazem
os pássaros esmagados
dentro dos sonhos
que já não brilham como estrelas
de que se faz o silêncio do vazio
e flutua
a boca gelada que já nada pede
o fio trémulo que suspende a lua ?

de que se fazem os passos
na chuva o calor sufocante e o odor do laranjal
de que se faz
o recanto da luz
de que se fazem os ódios calcinados a greta da miséria
a tua fome ó vão guerreiro ?

de que se fazem o pranto
o destroço o duro arco vergado o caule
morto
ofício roxo de um céu esquecido ?

de que se fazem?
de que se fazem?





Pedro Saborino

terça-feira, 27 de março de 2012

do mal



aqui
desenhamos o círculo da infâmia

atam-nos os braços espíritos da fome

aqui cavalgamos a maldade infinita
por ressequidos desertos
sem amanhecer

dai-nos estes lábios roxos
e o furor do sangue
para que nada nos reste
além da verdadeira morte



Pedro Saborino

segunda-feira, 26 de março de 2012

sufrágio















a poesia nesta terra está cada vez mais morta
mais cinzenta
mais insignificante
mais nula
cada vez há menos poesia viva nesta terra
as portas fecham-se no desígnio da morte da poesia
e os poetas morrem aliterados
coitados
coitados
nesta terra
de poetas aliterados
e mortos

coitados







Pedro Saborino

quarta-feira, 21 de março de 2012

viagem

Quinta das Aveleiras, Torre de Moncorvo


caminhei muitas vezes por esta estrada de aveleiras
ao entardecer na saudação do poente
nasci muitas vezes da sua seiva como a água reflui da matéria ou o canto das aves veloz e inesperado se insinua entre o sangue e a memória
ou o silêncio dos lugares se purifica sobre o rosto
no prenúncio da viagem
lembro-me de como era quente o chão sob os meus pés
e como de dentro
do seu fogo íntimo e inominável
sofria a terra
em seus arados imóveis

estive aí e aí fui chamado por vozes que clamavam os nomes da inocência
estive aí sentado sobre a pedra
e os meus dedos tocavam-na longamente como o ceifeiro toca a superfície mansa da seara
e eu fazia parte desse lugar
das suas palavras que escorriam devagar sobre o musgo
em fios antiquíssimos
estive aí muito perto

Pedro Saborino










sábado, 17 de março de 2012

sagração

imagem de Pina, Wim Wenders




o poema tem um cristal
e o sangue explode nas arestas
quando se desnuda

a palavra é o interior do silêncio
o poema a sua viagem
até à margem do cântico final

o fogo a carne o suor a lágrima do sexo
a exaustão
que o tempo prolonga
em raiva
e sedimento animal

o poema constrói um rio
entre salgueiros de raízes descarnadas

porventura alguma vez nos pertenceu o poema ?
ou vimos de perto o rosto do poeta?



Pedro Saborino















quarta-feira, 14 de março de 2012

epistolário sentimental



no silêncio aparente dos mortos declinam-se os recantos
da terra agora extinta
o brilho lunar dos heróis
morro por dentro como a vaga inacabada e o tempo (inconcluído destroço do nada sideral) vagueia sobre mim
chamando-me, como a ave
no seu grito invoca a liberdade

porém do nada se refaz o vento inconformado
e na rocha bruta desenha-se o teu rosto
a manhã acende poderosa a chama da paixão
então o mar irrompe sobre ti incontido na gruta do desejo
tudo se suspende sobre o teu corpo
tocando no desejo o eterno


Pedro Saborino

sábado, 3 de março de 2012

Para Maria Gabriela Llansol

No 3º aniversário da sua morte

do real

(…) Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola e se levanta.
Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig,1994



sempre ali estiveram, na dobra dos dias
mas apenas os revelámos nas palavras
por vezes de forma mortal decidindo a imagem
ou o sentido da imagem no seu interior
sem que se revelassem por si mesmos ao nosso olhar

de modo que a geração das palavras
com que os nomeávamos, ou lhes definíamos a curva,
continuamente se insinuava entre nós e o tempo


Pedro Saborino


in Marginalia