cosa mentale
(…) ninguém sabe como e por que meios a mente move o corpo.
Espinosa, Ética
No início tinha apenas umas fulgurações, algo que não o incomodava muito. Como que uma pressão por detrás da órbita direita. Nada que o impedisse de escrever. Muito menos de pensar. As suas rotinas diárias fluíam invariáveis, as aulas, o novo romance que começara a rever, a crónica semanal que tinha de enviar para a redacção até quarta feira, a visita diária ao café, os seus papéis em que anotava ideias e comentários de leituras, por vezes fazia desenhos. Desde que se separara tinha mais tempo para tudo isso. O Brisk, o velho boxer, tinha morrido meses atrás. A casa tinha agora uma penumbra de fumo de cachimbo e fina poeira suspensa que os escassos raios de luz revelavam. Retirara todas as fotografias dos caixilhos que agora se dispersavam vazios pela casa como olhos cegos. Ficava por vezes, sentado na beira da secretária, a olhar esses caixilhos como se fossem quadros de memória silenciosa. Tinha um passado, claro, para lá dessa fronteira invisível. Toda a gente tem um passado. O corpo tem um passado físico inexorável. Mas olhar o tempo era diferente. Não porque as coisas tivessem mudado, mas porque se sentia diferente.
Começara entretanto com dores mais fortes. O olho direito começara a ficar mais saliente e a visão complicou-se. Agora via duas imagens.
Tudo se precipitou a partir daí. Os exames médicos mostraram um tumor dentro da órbita. No dia em que lhe deram a notícia foi para casa e sentou-se junto da janela da sala até anoitecer, com as mãos cruzadas sob o queixo, estático. Pela primeira vez pensou que podia morrer.
Morrer sozinho. Para si e dentro de si. Entre os livros e papéis espalhados. Como a chuva que caía lá fora era algo que podia apenas explicar, mas que não podia impedir. Tal como a divindade universal.
Podia então morrer indefinidamente e continuar . Porque morrer não era um bem, nem um mal. Apenas uma transição.
(…) ninguém sabe como e por que meios a mente move o corpo.
Espinosa, Ética
No início tinha apenas umas fulgurações, algo que não o incomodava muito. Como que uma pressão por detrás da órbita direita. Nada que o impedisse de escrever. Muito menos de pensar. As suas rotinas diárias fluíam invariáveis, as aulas, o novo romance que começara a rever, a crónica semanal que tinha de enviar para a redacção até quarta feira, a visita diária ao café, os seus papéis em que anotava ideias e comentários de leituras, por vezes fazia desenhos. Desde que se separara tinha mais tempo para tudo isso. O Brisk, o velho boxer, tinha morrido meses atrás. A casa tinha agora uma penumbra de fumo de cachimbo e fina poeira suspensa que os escassos raios de luz revelavam. Retirara todas as fotografias dos caixilhos que agora se dispersavam vazios pela casa como olhos cegos. Ficava por vezes, sentado na beira da secretária, a olhar esses caixilhos como se fossem quadros de memória silenciosa. Tinha um passado, claro, para lá dessa fronteira invisível. Toda a gente tem um passado. O corpo tem um passado físico inexorável. Mas olhar o tempo era diferente. Não porque as coisas tivessem mudado, mas porque se sentia diferente.
Começara entretanto com dores mais fortes. O olho direito começara a ficar mais saliente e a visão complicou-se. Agora via duas imagens.
Tudo se precipitou a partir daí. Os exames médicos mostraram um tumor dentro da órbita. No dia em que lhe deram a notícia foi para casa e sentou-se junto da janela da sala até anoitecer, com as mãos cruzadas sob o queixo, estático. Pela primeira vez pensou que podia morrer.
Morrer sozinho. Para si e dentro de si. Entre os livros e papéis espalhados. Como a chuva que caía lá fora era algo que podia apenas explicar, mas que não podia impedir. Tal como a divindade universal.
Podia então morrer indefinidamente e continuar . Porque morrer não era um bem, nem um mal. Apenas uma transição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.