sexta-feira, 23 de setembro de 2011
os olhos vazios dos deuses
Os homens da Europa, abandonados às sombras, desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Trocaram o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça quotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perderam a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam imortalidade a uma prodigiosa agonia colectiva. Já não acreditam naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o mistério da Europa é que ela já não ama a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo adiando-a para mais tarde.
A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem, levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumanidade. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles divinizaram-se e a sua desgraça começou: estes deuses têm os olhos vazios.
Albert Camus, O Homem Revoltado , 1951
Não queremos os deuses
da misericórdia
não tememos a dor
não tememos o medo
não queremos voltar a ser a imagem da inquietação.
Invocamos-te, divindade, para te dizer: não te queremos.
Já não somos escravos, libertámos a vontade
defrontámos o teu rosto para te mostrar os nossos olhos
a nossa boca que proclama liberdade
os nossos braços que derrubaram as grades
das tuas prisões.
Pode a tua voz rugir sobre nós, lançar o medo, o opaco
manto da negação
mas nada nos deterá.
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"Diálogo" mais que perfeito.
ResponderExcluirCamus assumia-se mais como "romancista", por que "trabalhava" com as palavras e menos com as "ideias". Isto é uma espécie de "boutade" que ele utilizou num "debate" feroz com Sartre e de Sartre "contra" Camus.
História conhecida.
Mas o Daniel faz um exercício interessante, que é o de colocar a sua poética em "contraponto" com o pensamento, profundamente, filosófico do nosso comum amigo, A. Camus.
Gostei, muito.
Obrigado pela análise, aliás brilhante e plena de concisão.
ResponderExcluirAs ideias estão acima do quotidiano. Aliás vivemos com os pés no quotidiano e o espírito na busca da verdade.
Abraço amigo
Daniel