segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
o que é um corpo ?
descreve-me a nudez da morte
o espaço entre o olhar e a memória impossível
a voz cativa dentro da dor
fala-me depois da entrada das aves
do seu rumor estrepitoso e da sua cor amarela
como os sinos matinais
fala-me da noite imóvel com as suas cruzes negras
fala-me do silêncio dos velhos
dos seus braços caídos
dos miúdos ranhosos junto ao rio de cinza
fala-me da sua revolta indizível
fala-me depois do sonho verdadeiro
do seu cristal
desvenda-me o interior do corpo
a sua luz
domingo, 18 de novembro de 2012
estrada
estrada
já não habito essas ruas com tílias e varandas
silêncios entre os pássaros da manhã
geometrias de calcário e estátuas a olhar o rio
já não abro as janelas de par em par nem delas respiro o vento inquieto
agora apenas me sento
na cidade
no seu recanto
onde o mistério é sombrio
e as perguntas não têm respostas
e as palavras se apagam por dentro
em gélidas revelações da memória
sento-me aí por fim
sobre as revoltas
e nada digo ou penso ou invento destes muros
desta ruína
deste silêncio da peste
deste cabelo frio do medo
há cadáveres de rosto incerto junto de mim
toco-lhes a pele ainda húmida como se lhes ficasse da noite o espanto a fome
invoco os deuses da abundância agora ausentes
e nada resta agora
senão os cavalos mortos na paisagem
sábado, 4 de agosto de 2012
Quinto império
quinto império
vem do tempo antigo a memória
pelo percurso do vento
luz e trevas juntam-se no punho da manhã
a sua voz reclama da bruma não já o desejado
mas o teu corpo abrupto
o rumor que flui do sangue vasto e urgente
a viagem no mar austral continua
na navegação destes rostos agora silenciosos
que olhamos
aqui está pois o povo infindo
na claridade do despertar
somos agora talvez mais do que o futuro
Pedro Saborino
sexta-feira, 13 de julho de 2012
O fio invisível
O fio invisível entre os teus dedos rompe o espaço
que revela a manhã.
Os teus dedos fabricam o fato
tecem o velo da memória,
e a obra cresce do nada
como se fosse ela mesma e a vibração da sua imagem
o misterioso rio e a sua nascente,
o rosto indecifrável da vida e o olhar vigilante da morte.
Os teus dedos desvendam o interior do duro ofício,
gesto a gesto,
o alinhavo que antecede a forma,
o ombro altivo, a entretela , o botão, a gola, a dobra,
a costura minuciosa do silêncio.
E as tuas mãos desdobram-se na inquietação dos dedos,
como ramos celebrados das noites
em que dizias os versos todos
da tua vida
dos lugares ali presos nas palavras.
E as tuas mãos desfazem os gestos, rompem-nos por dentro tal como a raiz se insinua no cerne da rocha
e assim nos faz renascer do chão.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Os meus poetas - Paul Celan
Vinhateiros escavam o relógio das horas sombrias
cada vez mais fundo,
tu lês,
o Invisível desafia o vento,
tu lês,
os Abertos trazem a pedra atrás do olho,
ela te reconhecerá,no dia do Sabbath.
Paul Celan
os vestígios da morte dissipam-se na neve
o derradeiro passo diz-me que já não há regresso
a noite é então intensa nos meus dedos gelados
ouvimos muito perto as canções que perfuram o silêncio
e a minha mãe vigia
as palavras são a minha liberdade
o silêncio a minha condenação
se me ouvires poderei resistir
não existo só por mim mas porque me ouves
estou aqui
nu
acorrentado
perplexo
na desordem das coisas divinas
Pedro Saborino
segunda-feira, 25 de junho de 2012
abissus abissum invocat
Com um primeiro ministro convalescente de uma delicada cirurgia de descolamento de retina e portanto inactivo , um ministro das finanças demissionário por cólicas abdominais, sem quaisquer interlocutores a nível comunitário, sem dinheiro nos cofres do Estado para pagar salários de Junho e outros compromissos imediatos - o abismo grego é inevitável.
E depois?
segunda-feira, 18 de junho de 2012
Nostoi
Serra do Roboredo, Moncorvo - imagem de Farrapos de Memória
Nostoi
(…) e o fim de toda a nossa exploração
será chegar aonde partimos
e conhecer esse lugar pela primeira vez
T.S.Eliot, Quatro quartetos
assim, entre o nada e a destruição dos dias, ocupo-me por fim dos seus escombros
busco por galerias de antigas minas da memória
o interior do ser
antecipando a grandiosidade do fogo,
metalúrgico sinal da origem
estou preso nas entranhas do verbo
evoco os lugares que julguei serem meus,
entre mim e outro, indecifrável,
diria todos os outros nos quais já não consigo ver-me
mas que fui eu e eu conheci
e me descobriram nesses lugares
lugares talvez verdadeiros
talvez apenas lugares através dos meus sentidos
descrevo-me pois viajante de retorno à idade das vozes primitivas
ao refúgio no qual cresce a inquietação
e o olhar do próprio tempo
Pedro Saborino
terça-feira, 12 de junho de 2012
dies irae
dies irae
nesta cidade viverá o teu nome
ó deus da justiça, mais do que os anjos que velam o invisível
sobre nós baixarás a tua mão
brotará o sangue sobre a nossa cabeça
como a bênção da morte redentora
falarás depois do esquecimento e
tudo se fechará num silêncio absoluto
como a luz que provém da escuridão
um rio que vem do fundo do tempo
remoto tal a origem do corpo
o universo tremerá, no espaço negro da força incógnita
e então desvendarás o significado da sabedoria do anjo
e das formas
mostrarás o teu poder
sobre a quietude, o vazio,
desvendarás a dor que nos acorrenta
e nos mantém escravos
nesta cidade escutaremos finalmente a tua voz
- ó deus da justiça-
como o cântico da libertação
Pedro Saborino
quinta-feira, 7 de junho de 2012
Corpus Christi
(…) Sob a pressão de vozes vindas do exterior, eles passaram a métodos mais suaves e têm dado ordens no sentido de que não se toque em um cabelo sequer de judeu.
Este boicote – que nega às pessoas a possibilidade de desenvolver uma actividade económica, a dignidade de cidadão e a pátria – tem empurrado muita gente para o suicídio: cinco foram os casos trazidos ao meu conhecimento somente dentre os meus familiares.
Estou convencida de que se trata de um fenómeno geral que provocará muitas vítimas. Pode-se pensar que os infelizes não terão tido bastante força moral para suportar o seu destino. Mas se a responsabilidade cai em grande parte sobre aqueles que os empurraram a um tal gesto, ela recai também sobre aqueles que se calam.
Tudo isto que aconteceu e que acontece quotidianamente vem de um governo que se define como “cristão”. Não somente os judeus, mas também milhares de fiéis católicos da Alemanha – e, eu penso, do mundo inteiro – aguardem depois de semanas e esperam que a Igreja de Cristo faça ouvir a sua voz contra um tal abuso do nome de Cristo (…).
Edith Stein, 1891-1942 (Auschwitz), canonizada em 1998 por João Paulo II como Santa Teresa Benedita da Cruz
Carta ao Papa Pio XI , 12 de Abril de 1933
segunda-feira, 4 de junho de 2012
os dias impuros
os dias impuros
escrevo-lhe não para me confortar mas para lhe dizer que apesar de tudo as dores não me atormentam tanto agora com o novo tratamento embora o tumor do meu pescoço continue muito inchado e tenso, sinto uma pressão enorme que por vezes me impede de falar e de respirar fico mesmo no limite da asfixia, as sessões de quimioterapia e de radioterapia deixam-me muito debilitado mas acho que depois ficarei melhor, muitas vezes imagino mesmo que me vou curar, é uma forma de olhar o mundo, sabe que continuo a trabalhar vou ao escritório falo com os colegas abro uns processos discuto umas ideias escrevo umas minutas sinto-me útil compreende? de resto sei que não posso fazer muito mais, depois regresso a casa vou sempre a pé devagar vou sorvendo os ruídos do mundo as vozes o ladrar dos cães o barulho dos carros entro no café e bebo uma bica a olhar um ou dois velhotes mal barbeados que reviram o jornal quase esfarrapado com notícias que nada adiantam ao seu rosto embaciado e eu próprio me perco por vezes em tal divagação, mas depressa me liberto do limbo incerto e procuro os sinais de que estou vivo, sofro por vezes cruamente mas estou vivo digo porquê não sei mas estou vivo de resto o que é viver? a obra feita ? as mulheres que amei? o meu filho que entretanto deixou de existir? o que é que eu fiz afinal na vida? fui o falcão agrilhoado ou a garra da águia ? a torrente o rio incontido ou o charco a viela a esquina? não lhe sei dizer nem será importante dizer porque nada é mais importante agora do que desatar estas cordas que sinto em volta de mim como uma servidão, não que eu deseje sofrer ou que a dor me purifique ou me redima ou absolva mas tão só porque não quero caber dentro do meu corpo quero estar do lado de fora de mim e olhar-me apenas como o ser físico sofredor o outro frágil que a doença vai minando, estou pois aqui ao mesmo tempo espectador da minha condição e senhor de mim mesmo, tenho dado comigo a pensar como desta forma eu posso escolher entre a essência da minha liberdade e a existência da minha natureza humana que se enreda na trama de todas estas vicissitudes às quais não posso fugir
vou tal como sísifo carregar a pedra do vale ao cume, da humilhação até à face dos deuses,dia após dia, vou acorrentar a morte
abraço amigo F.
Imagem de bucaorg (CC-usage) Flickr
domingo, 27 de maio de 2012
Houla
aqui cavalgamos a maldade infinita
por ressequidos desertos
sem amanhecer
dai-nos estes lábios roxos
e o furor do sangue
para que nada nos reste
além da verdadeira morte
quinta-feira, 24 de maio de 2012
Gaiteiro
que do fole revivem como guerreiras danças
sábado, 12 de maio de 2012
o que é perder ?
(...) E, no entanto, eu escrevo…
As vidas que, durante a batalha, se vão perder, enquanto chamas vivas, iluminaram quem, o quê? A mim?
E que pujança estética sem nome tiveram (ou estão tendo?), esses homens e mulheres?
Que linha do tempo foi ali quebrada?, mas não partida, e lhes envolve o ser?
Que nuvem continua transitando? Por que será que no horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de acções inacabadas?
(Maria Gabriela Llansol in Finita. Diário 2. 2ª ed. Assírio & Alvim, 2005, pp. 21-22; 46-47)
inquieto o tempo desdobra
nas mãos os múltiplos silêncios
da valsa
imperfeita
o vagar da noite que arde sobre o rio
palavra a palavra
até ao mar final da memória
pois nada sabemos
de ti
Pedro Saborino
quinta-feira, 3 de maio de 2012
do tempo
muitas coisas se passaram dentro dos meus versos
alongou-se, talvez demais, o espaço entre as sílabas
o que prenunciava a mudança
e eu estava ali nesse silêncio compacto e viscoso
da espera
nada definitivamente nada fluía de tal recanto
digamos desse indefinido pedaço de memória
como uma mera imagem das minhas inquietações
aí então, tal faca no vazio, se revelaram os diversos tempos
o tempo inicial e informe do princípio
milhões de milhões de anos de poeira sideral
até ao tempo do meu passo sobre este mesmo chão
ou o meu tempo interior, sem tempo
do tempo medido do meu gesto
ao tempo sem tempo nenhum da minha ideia de tempo
do universo que flui de mim
ao segundo infinitesimal da ideia
passado presente e futuro são apenas construções
como o tempo da minha vila se constrói naquele fontanário da praça
que eu vejo
mas podia nem sequer ver
podia apenas imaginar
como as pedras sobrepostas de uma escada
ou o amanhecer através da janela envidraçada deste quarto sobre a serra
aí então a minha memória poderia descobrir o tempo definitivo
o tempo essencial
quarta-feira, 25 de abril de 2012
invocação
invocação
tomámos ali o vento
sobre o rosto
ali bramia o vendaval da manhã desperta
éramos mais do que nós
nos nossos sonhos
já não havia grades entre nós e o mar
o perfeito acorde rompia-nos o peito
como a vaga interior da paixão
éramos então o futuro
a origem
a luz
quarta-feira, 11 de abril de 2012
Epistolário sentimental III
no silêncio aparente dos mortos declinam-se os recantos da terra assim extinta sobre o brilho lunar dos heróis
morro por dentro, na vaga do tempo
inconcluído
destroço do nada que vagueia
e, chamando-me, a ave
do nada se refaz o vento que varre a memória,
e na rocha, na sua bruta forma, desenha-se por fim o teu rosto
que a manhã acende em poderosa chama da paixão
a luz irrompe então sobre ti, incontida, como o mar na gruta do desejo
tudo se suspende
e o teu corpo nasce, intocado e nu
na invocação da manhã
Pedro Saborino
sábado, 7 de abril de 2012
Pessah

detemos o curso do tempo nesta taça de vinho
e os nossos olhos brilham de novo com fulgor
a memória vive
num movimento de futuro
porque aqui imaginamos a liberdade
suspendemos o golpe mortal do anjo
sobre o nosso rosto
que assim se abre para a luz
vem escravo
sai e caminha comigo
nesta noite
em que começamos a viver
Pedro Saborino
quinta-feira, 29 de março de 2012
Para Rafael Albertí
de que se fazem o canto e as duras formas dos picos submersos na angústia do anoitecer de que se faz o rosto acerado
aquelas mãos retorcidas que cortam o vento
de que se fazem
os pássaros esmagados
dentro dos sonhos
que já não brilham como estrelas
de que se faz o silêncio do vazio
e flutua
a boca gelada que já nada pede
o fio trémulo que suspende a lua ?
de que se fazem os passos
na chuva o calor sufocante e o odor do laranjal
de que se faz
o recanto da luz
de que se fazem os ódios calcinados a greta da miséria
a tua fome ó vão guerreiro ?
de que se fazem o pranto
o destroço o duro arco vergado o caule
morto
ofício roxo de um céu esquecido ?
de que se fazem?
de que se fazem?
Pedro Saborino
terça-feira, 27 de março de 2012
do mal
segunda-feira, 26 de março de 2012
sufrágio
quarta-feira, 21 de março de 2012
viagem
caminhei muitas vezes por esta estrada de aveleiras
ao entardecer na saudação do poente
nasci muitas vezes da sua seiva como a água reflui da matéria ou o canto das aves veloz e inesperado se insinua entre o sangue e a memória
ou o silêncio dos lugares se purifica sobre o rosto
no prenúncio da viagem
lembro-me de como era quente o chão sob os meus pés
e como de dentro
do seu fogo íntimo e inominável
sofria a terra
em seus arados imóveis
estive aí e aí fui chamado por vozes que clamavam os nomes da inocência
estive aí sentado sobre a pedra
e os meus dedos tocavam-na longamente como o ceifeiro toca a superfície mansa da seara
e eu fazia parte desse lugar
das suas palavras que escorriam devagar sobre o musgo
em fios antiquíssimos
estive aí muito perto
Pedro Saborino
sábado, 17 de março de 2012
sagração
o poema tem um cristal
e o sangue explode nas arestas
quando se desnuda
a palavra é o interior do silêncio
o poema a sua viagem
até à margem do cântico final
o fogo a carne o suor a lágrima do sexo
a exaustão
que o tempo prolonga
em raiva
e sedimento animal
o poema constrói um rio
entre salgueiros de raízes descarnadas
porventura alguma vez nos pertenceu o poema ?
ou vimos de perto o rosto do poeta?
Pedro Saborino
quarta-feira, 14 de março de 2012
epistolário sentimental

da terra agora extinta
o brilho lunar dos heróis
morro por dentro como a vaga inacabada e o tempo (inconcluído destroço do nada sideral) vagueia sobre mim
chamando-me, como a ave
no seu grito invoca a liberdade
porém do nada se refaz o vento inconformado
e na rocha bruta desenha-se o teu rosto
a manhã acende poderosa a chama da paixão
então o mar irrompe sobre ti incontido na gruta do desejo
tudo se suspende sobre o teu corpo
tocando no desejo o eterno
sábado, 3 de março de 2012
Para Maria Gabriela Llansol

do real
(…) Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola e se levanta.
Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig,1994
sempre ali estiveram, na dobra dos dias
mas apenas os revelámos nas palavras
por vezes de forma mortal decidindo a imagem
ou o sentido da imagem no seu interior
sem que se revelassem por si mesmos ao nosso olhar
de modo que a geração das palavras
com que os nomeávamos, ou lhes definíamos a curva,
continuamente se insinuava entre nós e o tempo
Pedro Saborino
in Marginalia
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
Para Herberto Hélder

Herberto Hélder, in a Imagem Expansiva, 1981
círculo de fogo
procuro as vozes nocturnas das imagens
na escuridão desvendo o espaço interior das coisas mortas
nada é apenas um grito
um apelo da dor
um membro trucidado
as flores são meras metáforas da maldade
o vácuo insano
caminho em passos de cego
sobre a carne
que o fogo me consome
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
Para Lorca

(…) dos que morreram separa-me
um muro de sonhos maus.
Gazel da lembrança de amor , Federico Garcia Lorca
nada
enche agora este campo senão o luar
(em Agosto a lua resplandece sobre Granada)
quantos corpos mais vão cair
junto ao rio sangrento?
quantas flores celebrarão o negro olhar
fitando a morte?
quantos gritos clamarão a liberdade?
e o rio vai
levando o silêncio e a noite
como o aroma do laranjal até ao mar
verde que te quero verde
dizias
e sobre ti não passarão
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Para Camões

desvendo-te nas coxas o meu poder
dentro de ti, navego-te, sem te saber
tão perto o fogo, tão fundo o olhar
invento-te o mistério, a dor, o despertar
do teu gemido, que no amanhecer
abre a obscura gruta, o súbito enlouquecer
da vaga insaciada, da morte devagar
domingo, 15 de janeiro de 2012
O poder da literatura

Pela sua importância e oportunidade junto, com a devida vénia, um link para o post da Profª. Helena Damião no excelente blog De Rerum Natura.
Trata-se de uma súmula do livro Para que serve a literatura de Antoine Compagnon ( foto acima) no qual se reflecte sobre o significado da literatura na vida e na escola.
http://dererummundi.blogspot.com/2012/01/para-que-serve-literatura-2.html#links
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Para Fiama

pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante (…)
Fiama Hasse Pais Brandão in “ As Fábulas” ed. Quasi
nada restará de mim para além do verbo essencial
a mudança do olhar
a liturgia da paixão
nada recriará a viagem
senão o interior das palavras
a sua paisagem verdadeira
nada lembrará o mar senão o barco
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Para Álvaro de Campos

é noite e passeio na rua o meu cão
tenho a lua e as estrelas sobre mim e, vendo-as, divago
de constelação em constelação, de galáxia em galáxia, de cúmulo em cúmulo
em cósmica viagem
vou até aos princípios que se afiguram muito para além do fim deste universo
(pressinto que sejam outros universos)
e daí ainda por distâncias que a astrofísica já não entende
talvez só o sonho dos universos apenas sonhados
ou a poesia
porque a poesia não tem regras físicas, não se submete à gravidade
nem precisa do tempo para existir
e penso: o que é a distância? que métrica me toma o olhar sobre estes astros como se fosse a geração do tempo e este por si mesmo
o espaço, deixando-me vê-los pela sua luz
que viaja até mim através do espaço sideral?
onde estou , silencioso espectador do nada?
aonde me transporta aquilo que eu não sei, ou aquilo que deixei de saber, ou aquilo que nunca virei a saber?
estou aqui, inerte, ou movo-me? quem sou eu afinal? desígnio ou matéria pensante? que do vazio irrompe
como a vida ressurge da morte
em ramos poderosos, em fontes submersas que rasgam subitamente a quietude da paisagem
quem somos nós todos, viventes, quem é o deus que nos observa
nos acolhe os temores,
as imperfeições, a ignorância, a soberba?
que pedra bruta somos até modelarmos o nosso rosto verdadeiro?
depois o meu cão alça a perna junto à árvore
e regresso à fina crosta da noite
Pedro Saborino
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
Para R.M.Rilke

R.M. Rilke
é necessária a poesia? é necessária e urgente a poesia?
os deuses vagueiam por dentro deste cântico funesto e o mundo celebra o efémero, sabemos tudo o que resta de nós, agora mortais,
e as vozes grandiosas já não nos comovem
como o rosto macio do jovem
ou a água vibrante na corda do vento matinal
é então necessária a poesia?
como descreveríamos a paixão das palavras, como ressurgiríamos do nada para o eterno?
como viveríamos assim, em concêntricos círculos de inquietação até ao mistério final?
como diríamos amo-te, ou desejo-te, ou tomo-te na vaga poderosa da carne, sem sucumbir?
como diríamos eu sonho, ou desvendaríamos a luz do poente?
acreditamos no poder da poesia
porque
Pedro Saborino