sexta-feira, 27 de março de 2009

Cancro, listas de espera e cidadania





A doença oncológica tem um peso social imenso - pelas implicações pessoais e familiares da doença em si, pelo ónus de rejeição que na crua realidade dos dias muitas vezes ocorre, pela gravidade dos tratamentos , pela ansiedade que o confronto com o diagnóstico desencadeia, pelas próprias fragilidades dos sistemas de saúde envolvidos.


A minha experiência como cirurgião oncológico tem-me permitido contactar muito de perto com estas realidades e, sobretudo lidar com duas fases cruciais da doença : o momento da notícia de que se tem um cancro e, por vezes também, com a notícia de que estão esgotados os tratamentos de intenção curativa ou de que não é já possível operar , por estarem excedidas as possibilidades da cirurgia.


Desta última ( que envolve um grande e desgastante desafio de reflexão, entre os limites e possibilidades da cirurgia , as expectativas do doente e aquilo que é legítimo fazer numa perspectiva humanista de dignidade do doente ) falarei numa outra ocasião.


A notícia , a chamada má notícia, precisa de tempo, quietude, ponderação, conhecimento e sensibilidade para o universo do doente. Cada caso é um caso, mas, invariavelmente o efeito imediato é de estupefacção e vazio. Eu olho nos olhos os meus doentes e nesses instantes pressinto-lhes um longo e infinito vazio , algo entre o desabar de um mundo de projectos e a aridez do nada abosoluto. Que me ( nos) exige igualmente uma disponibilidade total que o frenesim dos serviços nem sempre permite conseguir em plenitude.


De qualquer modo o doente, a família , todo o seu possível contexto social, quantas vezes escasso ou até inexistente, se revertem para um rápida solução do problema. Na realidade o cancro não tem , não pode ter espera. Ninguém consegue confrontar-se semanas ou meses com a ideia de que uma ignara doença o corrói . Nem a evolução da doença o permite .E aqui começam os problemas.
A cirurgia oncológica ( e de uma forma lata a terapêutica inicial ou primária) é reconhecidamente um factor de prognóstico. Daí que seja indispensável a existência de centros oncológicos especializados , que cumpram protocolos de tratamento e que possuam experiência efectiva destas patologias.
Infelizmente verificamos que nem sempre é assim e os doentes são com isso largamente prejudicados. Mas na maior parte dos casos ficam nas chamadas listas de espera, a aguardar a sua vez de serem internados e iniciar o tratamento.
Recorrem então muitas vezes a soluções alternativas, procurando outros hospitais e outros especialistas. Por vezes sem experiência de oncologia, cirúrgica ou outra. Por vezes nos hospitais privados, cujo última e talvez única finalidade é o lucro e não o interesse do doente , o qual despejam depois literalmente nos hospitais públicos quando se esgota o plafond do seguro . Muitas vezes mal ou incompletamente tratados.
Faz mal quem pensar que os hospitais privados estão ali para servir o doente. Quando muito servem-se do doente.
É portanto um problema de cidadania e de justiça social elementar que terminem as listas de espera oncológicas. E que se afiram qualitativamente os hospitais privados de forma rigorosa , isenta e autónoma.
E sobretudo que se invista convictamente no Serviço Nacional de Saúde, também na área oncológica. Sabemos demais quem o quer desmantelar e para quê.

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